quarta-feira, 12 de maio de 2010

O menino da bolha (parte III)


“Já chega dessa timidez, preciso fazer alguma coisa.” Na semana seguinte, lá foi ele todo confiante, abriu a porta, caminhou para a mesma seção de CD’s. Pegou um CD qualquer, foi até o balcão e jogou um saco com algumas notas de dinheiro dentro e saiu correndo da loja. Seu coração quase pára de bater na metade do caminho até em casa. Chegou em casa suado com o CD nas mãos. “Que merda! A moça deve achar que eu sou louco correndo daquele jeito.” E cada vez mais esse estranho sentimento o amedrontava.


Semana seguinte... Lá foi ele comprar outro CD. Pegou um CD qualquer da prateleira e entregou para a vendedora. Ficou de costas. Nem sequer olhou para ela. Ela sempre repetia o mesmo procedimento, embrulhava o CD com o papel da loja e o entregava de volta. E ele apenas jogava o dinheiro sobre o balcão e saía. E aos poucos ele foi aprendendo a lidar com a sua timidez, porém não conseguia falar com a vendedora. Era um passo muito grande que ele tinha que dar. E semanalmente ele escolhia um novo CD, a vendedora embrulhava, ele pagava e ia embora. E semanalmente também ele sofria de novos sintomas: cólicas, dores de cabeça, faltas de ar, dores nos ossos, vômitos, tosse, taquicardias, dores de ouvido...


Até que um dia ele resolveu vencer a timidez de uma vez por todas. “Já sei, vou comprar um CD, no saco de dinheiro eu vou colocar meu telefone e endereço.” E lá foi ele, saiu de casa com o saco de dinheiro nas mãos, pegou a rua de trás da sua casa, atravessou-a, entrou na loja, foi até a mesma seção de CD’s, pegou um CD qualquer e... ficou parado. Simplesmente travou. A idéia de vencer aquela timidez que há tanto lhe reprimia o deixou nervoso. Pensou em desistir várias vezes, porém seus pés não faziam nenhum movimento para levá-lo para fora dali. Simplesmente ficou ali, parado, por não se sabe quanto tempo. Começou a imaginar sua vida ao lado daquela moça, aquele nobre sentimento os unindo para sempre. Nunca tinha tido perspectiva de uma longa vida, mas diante daquela vendedora tudo era possível para ele, ela o fazia esquecer a doença, do quarto de vidro esterilizado, dos seus pais preocupados em casa, das suas limitações, dos médicos, dos exames, dos 15 minutos...


Olhou para o relógio: 25 minutos. Correu para o balcão onde a vendedora sorria para ele. E seus olhos se encontraram pela primeira vez. “Que olhos meu Deus!” Para ele já havia valido a pena estar ali atrasado. A visão dos olhos dela era melhor que qualquer visão que ele tenha visto durante todos esses anos que passou contemplando primeiramente os compartimentos da sua casa e depois as paisagens de fora. Nenhuma flor, ou pássaro, ou cheiro, ou som, ou brisa... nada se comparava àquele olhar. Tudo pelo que ele havia passado valeu a pena naquele momento. Todos os dias solitários em sua casa, todas as noites doente, todos os cuidados, os medos, as angústias, os sonhos adiados, os desejos reprimidos, tudo fez sentido naquele olhar. Rapidamente ele jogou o saco com dinheiro em cima do balcão e saiu em disparada para casa agradecendo a Deus por aquele momento.


No outro dia, logo cedo, a vendedora, antes de abrir a loja de CD’s, resolveu bater na porta da casa do rapaz. Uma senhora de preto atendeu a porta. Era a mãe do rapaz. Os olhos vermelhos e inchados denunciavam choro recente. Perguntou se ela era a vendedora da loja de CD’s e após acenar cabeça que sim a mãe do rapaz pediu para que entrasse. No canto da sala de estar, o pai do rapaz soluçava baixinho. A vendedora ficou sem entender. Olhou para a senhora de preto e perguntou onde estava o filho.


“Meu filho morreu... Ele não suportou a última noite, sofreu de inúmeras cólicas, feridas se abriram nas suas pernas, seus olhos foram aos poucos cegando, urinou sangue durante um tempo, até que seus rins deixaram de funcionar, começou então a sentir falta de ar, até que ele não agüentou mais e faleceu nessa madrugada. De todas essas dores, ele só queixava de uma. Da dor no peito por não poder ver os seus olhos novamente.”


E foi então que a vendedora desabou a chorar. Por 15 minutos, a mãe e a vendedora de CD’s choraram abraçadas. Depois daquele momento, a mãe pegou pela mão da vendedora e a conduziu até o quarto do rapaz. Foi então que a vendedora viu a morada dele. A arrumação impecável, o cheiro estéril, as cores neutras, as luzes artificiais... e aquilo a sufocou por um instante. “Como alguém conseguira viver ali por tanto tempo?”, pensou ela. Olhando para o canto do quarto, ao lado da cama, ela viu a escrivaninha dele com uma pilha de CD’s sobre a mesa. A pilha de CD’s que ele havia comprado na loja. Sequer tocara neles. E foi então que ela chorou mais ainda. Abrindo os embrulhos que ela mesma havia feito para ele com tanto carinho, ela tirava todos os bilhetes que havia escrito para ele, declarando todo o seu amor desde o primeiro dia que o vira do outro lado da rua. Do lado dos CD’s, cinco cadernos completamente preenchidos com declarações que ele havia feito para ela, desde o primeiro dia que a havia visto na porta da loja de CD’s.

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