quarta-feira, 5 de maio de 2010

O menino da bolha (parte I)

Era uma vez um menino que tinha nascido com Imunodeficiência Combinada Severa Humana, vulgo Doença da Bolha, qualquer besteirinha causava uma super infecção nele, ou gerava uma super gripe quase incurável, ou uma super alergia, enfim, ele era bastante frágil. Por causa disso, seus pais adaptaram seu quarto para que ele pudesse viver o máximo possível: era tudo esterilizado, as pessoas não podiam manter contato direto com ele, era sempre através de luvas e máscaras, ninguém na verdade podia chegar muito perto, a cama era feita de material antialérgico, bem como seus travesseiros, vestimentas, toalhas, lençóis, até a tinta que cobria as paredes do quarto era especial para não causar danos ao trato respiratório do menino. A cada 4 horas o quarto era limpo para não acumular poeira. A água para o banho era mineral, numa temperatura ideal para o seu corpo, sua pasta de dente era manipulada especialmente para ele com uma quantidade de flúor menor que a da maioria das pessoas, os sabonetes também eram feitos sob encomenda. Sua comida era fervida 3 vezes, ou cozida a ponto de matar toda e qualquer ameaça de bactéria, sem falar de suas restrições alimentares: nada de enlatados, frituras, congelados, era tudo fresco, feito na hora pra não perigar alguma contaminação. A luz do quarto era protegida com pedaços de papel para que não incidissem de forma tão agressiva sobre a pele sensível do menino. As paredes do quarto eram revestidas de chumbo para que nenhum pingo de radiação pudesse atravessá-la, bem como barulhos excessivamente altos que pudessem vir de fora. Era um quarto perfeitamente estéril por dentro, uma verdadeira bolha.


Os pais faziam de tudo para que o menino tivesse a vida mais normal possível, dentro dos rigores estabelecidos pela doença. Diversos professores davam aula diariamente para ele através de vídeos. Além disso, o menino tinha a sua disposição um laptop com Internet super veloz, onde podia navegar e saber de tudo que tivesse ao seu alcance na rede. Quando se sentia só o menino conversava com outras pessoas em bate-papos. Sua diversão era colocar músicas pra tocar no seu som e dançar sozinho. Adorava música. Seus pais, às vezes, dançavam com ele, mas sempre do outro lado da parede de vidro da bolha. Certa vez o menino colocou na cabeça a idéia de possuir um bicho de estimação. Os pais compraram um cachorro e junto com ele uma roupa impermeável para o garoto segurar o cachorro. Na verdade nem dava pra sentir os pêlos do cachorro através da grossa roupa de couro, por isso logo o menino perdeu a vontade de possuir animais. E assim o garoto foi levando a vida.


Através da vidraça fumê do seu quarto ele sempre via as pessoas passearem pela rua, as crianças brincarem nas calçadas, os namorados namorarem nos carros, e ele sempre teve a curiosidade, óbvio, de saber como eram as coisas por trás daquelas paredes chumbadas, atrás daquele vidro estéril, daquela bolha. Foi então que no seu Décio quinto aniversário ele resolveu pedir pra sua mãe para sair de casa para dar uma volta. Foi muito difícil para os pais aceitarem isso, eles sempre argumentavam a doença do filho, sua fragilidade. Como permitir que um garoto, que aos 4 anos de idade teve uma bronquite ao sentir o cheiro de um perfume, saísse de casa? Certa vez, ele pegara uma infecção intestinal por ter engolido ar não esterilizado de dentro da caixa do seu laptop. Seria um absurdo permitir que ele fosse sequer para fora do seu quarto, imagine de casa. Foi muito difícil para o menino agüentar aquela vida por mais tempo, ele tinha tudo que precisava, menos sua liberdade e sua curiosidade saciada de saber como eram as coisas lá fora.


Foram cinco longos anos de luta para convencer seus pais de que ele precisava de um pouco mais de espaço. Foi preciso que todos os seus 15 médicos lhe avaliassem semanalmente durante dois anos para que os pais se convencessem de que ele estava apto para tal feito. Testes oftalmológicos, neurológicos, psiquiátricos, respiratórios, cardiológicos, nefrológicos, gastrológicos e todasasoutrasespecialidadesdamedicinalógicos foram feitos. Todos deram dentro dos padrões da normalidade. Os pais permitiram então que ele saísse do quarto e que caminhasse pela casa, mas que isso não passasse de 30 minutos. Após esse tempo, ele deveria voltar para o seu quarto, voltar a se esterilizar, fazer alguns exames para saber se estava tudo normal e descansar. Isso só seria permitido uma vez por semana.


Então o dia chegou. Vestiu uma roupa qualquer (eram todas iguais, sem detalhes, sem imagens, sem tinta, completamente lisas) e respirou fundo. O rosto dos seus pais era um mister de medo/alegria. O sorriso estampado no rosto do garoto era impagável. Parecia que tinha ganhado 100 bilhões na Mega-Sena. Para ele, nada pagava aquela sensação. A porta de vidro se abrindo e ele passando através do portal. Obviamente os seus pais fizeram com que toda a casa estivesse o mais limpa possível, porém completamente estéril ela não estava. E ele deu o primeiro passo rumo a sua ‘liberdade’.


Imediatamente sentiu na sola dos sapatos a poeira do chão, o vento batendo no seu rosto, o cheiro diferente. Até o gosto na sua boca ficou diferente. E ele foi andando pela casa, com seus pais logo atrás pedindo pra ele tomar cuidado e 5 dos seus 15 médicos de prontidão para qualquer intervenção. Porém, para o garoto ele estava só, num mundo completamente desconhecido e cativante por descobrir, numa terra cheia de tesouros escondidos prontos para serem achados. Desceu as escadas e foi até a cozinha. Ali ele parou e ficou observando detalhe por detalhe daquele ambiente. Copos, talheres, pia, torneira, mesa, pano, fogão, geladeira, prato, prateleira, xícara, pires... Seus 30 minutos acabaram e ele ainda não tinha terminado de observar tudo da cozinha. Podia descrever com detalhes tudo que vira. Mas seu tempo tinha acabado e ele teve que voltar para o seu quarto. Sua felicidade era tremenda. Não se continha em si. Os médicos disseram que ele, durante aquela ‘aventura’, tinha pegue algumas bactérias, mas que eram facilmente tratáveis com fortes antibióticos. No mesmo dia, o menino escreveu cinco páginas do seu diário sobre aquele episódio.


Na semana seguinte, a visita foi até a sala de jantar. Na semana seguinte, até o piano da sala de estar, depois até o hall de entrada, depois até os aposentos dos hóspedes... Cada semana ele ia em um lugar diferente, formava uma imagem diferente na cabeça, sentia uma sensação diferente, uma alegria diferente. E cada semana ele terminava com mais cinco ou seis páginas escritas no seu diário. No dia que ele foi até o jardim foi o dia que ele mais chorou na vida. Foram muitas sensações novas bombardeando ao mesmo tempo. Aquela mistura de cheiros incrível, as cores vistosas das belas flores cultivadas pela sua mãe, aquele vento outonal soprando e trazendo as folhas secas das árvores próximas, o canto dos pássaros invadindo seus ouvidos, a visão de um beija-flor pairando sobre a sua cabeça... Fechou os olhos e pode sentir em toda a sua plenitude, com a alma e com o coração, tudo que se passava ao redor dele. “Pra quê olhos se já me deparei com isso uma vez? Posso muito bem formar essa imagem quantas vezes quiser na minha cabeça. E ela será tão bela quanto o é agora.”


E então, sua ânsia pelo mundo aumentou...


(continua...)

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