“Não vou cortar o cabelo, nem aparar a barba até sair esse resultado maldito do vestibular. Isso não é uma promessa, eu estou só dizendo que vou deixar crescer até lá.” Tomei essa decisão na véspera do meu vestibular, meu último vestibular. Cortei meu cabelo um dia antes, aparei minha barba e olhei para o meu rosto limpo pela última vez pelos próximos 2 meses. Mal sabia eu que iria virar um matusalém. No outro dia lá estava eu, saindo de casa cedo, minha irmã foi me deixar. Conferi os documentos necessários antes de sair de casa, peguei minha garrafa d’água, meu Sonho de Valsa, Diamante Negro, Bis, Pirulito POP, bala de menta, de gengibre, azedinha, pipper, halls, e todas outras comidas que todo mundo leva pro vestibular, minhas canetas (25 canetas ao todo, uma de cada cor, com uma porosidade diferente, de uma marca diferente) e fui com a confiança de todo candidato de vestibular. É HOJE, É ESSE O ANO, É AGORA!
Firme e forte lá ia eu em direção ao local de prova. No caminho encontrei o Tirulipa, amigo de cursinho. A conversa de sempre: “oi, tudo bem, confiante, preparado?”. De repente uma pergunta que não estava no script: “cadê teus documentos?”. Parabéns, eu tinha esquecido somente os documentos do vestibular dentro do carro. Calma, pega o celular e liga e pede pra virem deixar os documentos aqui. Cadê o celular? Em casa, a prova exigia que não se levasse aparelhos eletrônicos para fazê-la. MALDITO SEJAM TODOS AQUELES QUE DIFICULTAM A VIDA DOS LESADOS QUE NEM EU. Que sorte hein. E agora?
“Alguém, socorro, cartão telefônico, esqueci meus documentos, preciso ligar pra alguém.” Claro que se alguém tivesse não daria o telefone, ali eram todos concorrentes. Minha cara de mongol nerd retardado mental não ajudou. Avistei alguém com a roupa do meu cursinho. “Moço, esqueci meus documentos, quer quanto pra me emprestar teu celular pra eu ligar pra casa?”. Falar nisso lembrei que preciso dedicar uma missa praquela alma piedosa. Liguei pra casa e a conversa mais nonsense da minha vida foi estabelecida.
- Alô, vô, chama alguém, esqueci meus documentos dentro do carro, manda alguém vir deixar.
- Alô? Oi, tu não tinha ido fazer uma prova? Espera só uma instante.
E eu fiquei esperando na linha por 5 minutos, no telefone alheio, enquanto minha vó ia fazer sabe-se lá o que. E o tempo passava e a prova se aproximava e os créditos do celular se acabavam e eu sem documentos.
- Oi, voltei, o que foi?
- VÓ, PELO SANGUE DE KRISHNA CHAMA ALGUÉM PRA ME AJUDAR, ESQUECI MEUS DOCUMENTOS DENTRO DO CARRO, PEDE ALGUÉM PRA VIR DEIXAR ELES AQUI SENÃO EU NÃO FAÇO A PROVA.
- Ah sim, vou chamar o seu irmão.
Mais cinco minutos esperando. Nessas horas tudo acontecia: o povo se encontrava e se abraçava e vinha falar comigo e eu quase chorando e o povo entrando pra fazer a prova e eu sem nada nas mãos e meu irmão dormindo e minha vó indo acordá-lo. Pela demora imaginei que ela tivesse ido fazer o café da manhã dele primeiro, esquentado a água do banho, feito cafuné nele devagar pra ele não se assustar ao acordar. E eu berrava no celular alheio.
- VÓ! VÓ! VÓ!
De repente uma voz saiu do outro lado da linha
- Alô?
- (decepção na minha voz) Vó, a senhora denovo, cadê meu irmão?
- Está dormindo, ligue pra sua mãe.
Por que nessas horas ninguém entende nossos sentimentos? Minha próstata deve ter escorrido pela minha perna com aquela fala. Eu olhava para o dono do celular e ria amarelado com cara de esperasóuminstantequeminhavólesatáembaçandoaminhavida. Nessa hora eu acho que apaguei porque não me recordo de muita coisa, só de flashes que tentarei descrever.
- VÓ, EU VOU PERDER O MALDITO ANO PORQUE NÃO TÔ COM MEUS DOCUMENTOS E A CULPA É SUA SE EU NÃO FIZER ESSA PROVA (nessas horas vale culpar todo mundo, menos a leseira própria por ter esquecido os documentos no carro)... Mãe, eu quero meus documentos... Espera, não fecha o portão, meus documentos estão chegando... Eu quero passar em Medicina (imaginem o desespero, multipliquem pelo número de Avogadro e elevem a sexta potência, foi mais ou menos a quinta parte do desespero que eu senti)... Eu juro como estou inscrito no vestibular, só estou sem documentos... Eu quero comer Hagen Dasz (não sei porque falei isso, mas o distúrbio na minha cabeça era grande)... Eu vou explodir essa faculdade se eu não fizer essa prova do CÃO!!! ... MÃÃÃÃÃÃÃÃE, MEUS DOCUMENTOS, OBRIGADO... (imagino que nessa hora eu tenha me jogado no chão e rolado de alegria, mas realmente não me recordo)
E então voltei. Minha mãe finalmente tinha trazido meus documentos. Corri pra minha sala blasfemando aos quatro ventos: “Não querem que eu faça essa prova, mas eu vou fazer e só de mal vou passar nessa porra!” Quase levo o celular do homem embora. Era só o que faltava, conseguir os documentos, fazer a prova e levar o celular que era proibido e ser eliminado logo de cara. Voltei e devolvi o celular e fui fazer minha prova, tremendo todo. Ah, quanto à minha próstata que escorreu, ela se regenerou depois sozinha em mim.
Fiz a bendita prova.
(continua...)
Desde Então.
Há 9 anos
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